Equívoco e abuso do Estado na determinação da base de cálculo para apuração do ICMS devido.
1. Introdução: Algumas pessoas jurídicas, tais como as fábricas e indústrias, ao desenvolverem suas atividades econômicas, utilizam-se de energia elétrica em caráter essencial, necessitando, por conseqüência, que o seu fornecimento ocorra de forma diferenciada dos demais consumidores.
Neste sentido, para se prevenirem contra eventuais contratempos e garantirem o pleno funcionamento de seus empreendimentos, buscam junto às concessionárias, por meio de contratos denominados "reserva de energia elétrica", a disponibilização mensal da quantidade mínima de energia elétrica de que necessitam.
Ocorre, entretanto, que a tributação de ICMS, especificamente nos casos de não utilização integral da energia elétrica disponibilizada pela concessionária à empresa contratante, vem sendo feita de forma equivocada pelo ente estatal, que, erroneamente, a estabelece com base no total de energia disponibilizada, garantida contratualmente, ao invés de fazê-la com base na energia efetivamente utilizada pelo contribuinte.
Sendo assim, tendo em vista o flagrante desrespeito do ente estatal às disposições da Constituição Federal do Brasil, ao Ordenamento Jurídico Tributário Pátrio e aos próprios contribuintes, passamos a tecer alguns breves comentários acerca do assunto, apontando, conseqüentemente, a adequada aplicação da legislação ao caso em tela, com o fim de alertar os contribuintes sobre mais este abuso contra eles cometido, senão vejamos.
2. Da correta identificação da base de cálculo do ICMS nos contratos de reserva de energia elétrica: Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, ocorrida em 05 de outubro daquele ano, enquanto o Governo Federal não havia ainda editado a Lei Completar por ela exigida para regular o ICMS, as regras disciplinadoras de tal imposto constavam do Convênio Confaz n. 66/88(1), que fixou as normas provisórias reguladoras do ICMS.
Referido convênio, ao definir o aspecto temporal do fato tributário, e apontar sua base de cálculo, dizia claramente em seus artigos 2º e 4º, respectivamente, que tal fenômeno se realizaria "na saída de mercadoria do estabelecimento" e que a mesma seria equivalente "ao valor da operação".
Mais à frente, ao tratar especificamente do fornecimento de energia elétrica, a mesma legislação, em seu artigo 19, definiu a base de cálculo para apuração do valor a ser pago pelo contribuinte na operação comercial realizada dizendo que "A base de cálculo do imposto devido pelas empresas distribuidoras de energia elétrica, responsáveis pelo pagamento do imposto devido relativamente a operações anteriores e posteriores, na condição de substitutos, é o valor da operação da qual decorra a entrega do produto ao consumidor".
Com a entrada em vigor da Lei Complementar 87/96(2), que, em obediência ao disposto no inciso XII, do parágrafo 2º, do artigo 155 da CF/88, veio a regulamentar o ICMS, seguiu-se a mesma regra anteriormente posta, de forma que, conforme o disposto em seus artigos 12, inciso I; e 13, o fato tributário considera-se ocorrido no momento da saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte e a sua base de cálculo equivale ao valor da operação.
Desta forma, no que tange especificamente à questão ora posta em debate, podemos concluir que, desde sempre, a) o fato tributário do ICMS é a movimentação da mercadoria (energia elétrica); b) tal fato considera-se consumado no momento da saída da mercadoria do estabelecimento do fornecedor (concessionária); e c) a base de cálculo para apuração do valor do ICMS devido é o valor da operação (representada pela quantidade de energia elétrica efetivamente recebida pelo contribuinte).
Ou seja, seguindo os ditames da sua regra básica, temos claro que o ICMS cobrado pelo Estado no fornecimento de energia elétrica decorrente de contrato de reserva de demanda, só poderia ser adequadamente quantificado se apurado pela incidência sobre o montante de energia elétrica efetivamente entregue e utilizada pelo contribuinte, e não sobre a totalidade contratualmente reservada/disponibilizada pela concessionária. É necessário, portanto, que se separe a operação em dois momentos, o primeiro é o da celebração do contrato, pelo qual se paga um determinado valor estabelecido pela reserva da energia, e o outro é o da efetiva utilização da energia, a qual corresponde à base de cálculo do ICMS.
Entender que a base de cálculo do ICMS é a totalidade da demanda contratada, seria o mesmo que aceitar que o ICMS é imposto incidente sobre negócio jurídico, podendo ser cobrado em decorrência da simples celebração de contratos. Além disso, seria acreditar que a simples formalização desse tipo de contrato de compra ou fornecimento futuro de energia elétrica, por si só, representaria a circulação de mercadoria necessária para a caracterização do fato tributário.
Portanto, na hipótese, para se apurar adequadamente o valor devido a título de ICMS, não deve ser considerada pelo ente estatal a quantidade de energia elétrica reservada por meio de instrumento contratual, que representa negócio jurídico com efeitos restritos entre as partes, e inábil a criar ou alterar a natureza da obrigação tributária, mas sim a energia elétrica efetivamente circulada, fornecida e utilizada pelo contribuinte, que representa o real valor da operação(3).
Após decidir diversas vezes sobre o tema(4), o Superior Tribunal de Justiça, aplicando ao mesmo as regras da Lei 11.672/2008(5), sedimentou o entendimento acima defendido dizendo que "para efeito de incidência de ICMS, a legislação considera a energia elétrica uma mercadoria, não um serviço" e que "o ICMS não é imposto incidente sobre tráfico jurídico e a só formalização desse tipo de contrato de compra e fornecimento futuro de energia elétrica não caracteriza circulação de mercadoria"(6).
Logo, a correta base de cálculo a ser considerada para a apuração do valor do ICMS devido é a equivalente à quantidade de energia elétrica efetivamente recebida pelo contribuinte/contratante e não àquela disponibilizada pela concessionária.
3. Conclusão: Não obstante os argumentos acima elencados e apesar de não restarem mais dúvidas ao poder judiciário quanto à adequada quantificação do ICMS devido na operação de fornecimento de energia elétrica feita em decorrência de contrato de reserva de demanda, em que não houver a utilização integral, pelo contribuinte, daquela quantidade para ele disponibilizada, os entes estatais continuam a praticar o abuso ora tratado, ao passo que insistem em firmar posicionamento contrário nos julgamentos de requerimentos de reconhecimento de crédito feitos no âmbito administrativo das Secretarias das Fazendas.
Neste sentido, tendo em vista que na situação em tela se mostra clara a ilegalidade cometida pelo ente estatal, aos contribuintes resta a opção de buscar o agasalho do poder judiciário, para verem afastado o abuso praticado e, conseqüentemente, obterem a restituição dos valores indevidamente recolhidos aos cofres públicos.
Notas (1) Publicado no DOU do dia 16/12/1988 e ratificado nacionalmente pelo Ato Cotepe n. 01/89,publicado no DOU do dia 03/01/89.
(2) Conhecida como Lei Kandir - a sua entrada em vigor se deu, de acordo com seu artigo 36, no primeiro dia do segundo mês seguinte à sua publicação, que se deu no DOU do dia 16/09/1996.
(3) Se fosse o ICMS imposto sobre o "tráfico jurídico", a incidir sobre negócios jurídicos como contratos e outros instrumentos, aí sim seria lícito compor sua base de cálculo com o valor total do adimplemento, desimportante o fato de ter havido efetiva circulação das mercadorias. Ocorre, todavia, que o ICMS, na modalidade ora examinada, tem como fato gerador não a celebração de contratos, mas a circulação da mercadoria energia elétrica. Ora, tendo em vista que o momento em que se reputa acontecido este fato gerador (aspecto temporal) é a entrega da energia ao consumidor que a utilizará, enquanto tal não ocorrer não se poderá falar em incidência do mandamento jurídico-tributário, e, portanto, incabível a cobrança do imposto. (Parte do voto do Ministro do STJ José Delgado - Resp 579416).
(4)Resp 915141, 952834, 972843, 222810, dentre outros (5) Lei dos recursos repetitivos
(6) Resp 960476 - 1ª Turma - Relator: Teori Albino Zavascki Murilo Bonacossa de Carvalho* Advogado.
[Fiscosolt}
Postado por InforLegislativo às 06:52
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