A geração de energia por fontes renováveis já é uma realidade da matriz energética brasileira há muito tempo. O Código de Águas brasileiro foi criado no ano de 1934, tendo garantido à União a posse de todo o recurso hídrico natural. Nas décadas seguintes, em especial a partir da década de 70, juntamente com incentivos aos setores de petróleo e carvão, o governo passou a investir em empreendimentos de geração de energia hidráulica – inclusive por meio da criação de estatais como a Itaipu –, e esta acabou se tornando uma das fontes mais importantes de geração de energia no Brasil. Segundo o Boletim de Informações Gerenciais publicado pela Agência Nacional de Energia Elétrica em junho de 2018, a geração hidráulica representa atualmente 77,5% da matriz energética brasileira que compõe o Sistema Interligado Nacional.
Entretanto, no período compreendido entre julho de 2001 e fevereiro de 2002, falhas no planejamento e falta de investimentos no setor de energia, bem como a escassez de chuvas, levaram a uma das maiores crises energéticas no país. Para contornar a crise, o governo criou, por meio da Medida Provisória nº 2152-2, a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, que tinha por objetivo “propor e implementar medidas de natureza emergencial decorrentes da atual situação hidrológica crítica para compatibilizar a demanda e a oferta de energia elétrica, de forma a evitar interrupções intempestivas ou imprevistas do suprimento de energia elétrica”.
Esta Medida Provisória ficou conhecida como “MP do apagão”. Uma das medidas estabelecidas nesta MP foi justamente a diversificação da matriz energética, de modo a reduzir a dependência do regime hidrológico e suprir a demanda energética da população. Além disso, previu o fomento a pesquisas sobre fontes alternativas de energia e a necessidade de procedimentos céleres para outorga de autorizações para empreendimentos geradores de energia elétrica, dentre os quais aqueles de fontes alternativas.
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+JOTA: O direito das energias renováveis no contexto internacional
Neste contexto também foi editada a Resolução CONAMA nº 279/2001, por meio da qual ficou estabelecido um procedimento de licenciamento ambiental simplificado para empreendimentos elétricos com pequeno potencial de impacto ambiental, dentre os quais se destacam as usinas eólicas e outras fontes alternativas de energia. De acordo com o procedimento simplificado previsto nesta Resolução, a regra é que o empreendedor apresente um estudo ambiental de escopo reduzido, chamado Relatório Ambiental Simplificado (RAS). Caso o órgão ambiental licenciador avalie que há necessidade de uma análise mais abrangente, deverá exigir a elaboração do famoso Estudo Prévio de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (“EIA/RIMA”), que é mais amplo e complexo. No entanto, não estavam explícitos na norma os critérios para que determinadas situações ficassem sujeitas ao licenciamento complexo, causando insegurança jurídica.
Em 2014, o CONAMA editou norma específica para licenciamento de empreendimentos eólicos: a Resolução nº 462/2014. Essa resolução esclarece que cabe ao órgão licenciador enquadrar o empreendimento como sujeito ao licenciamento ambiental simplificado com base em seu porte, localização e o baixo potencial poluidor da atividade. Nesse sentido, a resolução esclarece as hipóteses em que o empreendimento é sujeito a licenciamento complexo por meio de elaboração de EIA/RIMA. São elas: os empreendimentos estarem localizados em áreas com características tais como presença de formações dunares, com vegetação em estágio avançado de regeneração no bioma Mata Atlântica, em áreas de rota de aves migratórias e áreas de ocorrência de espécies ameaçadas de extinção, entre outras restrições.
Diversos estados também promulgaram suas próprias legislações para o licenciamento ambiental de empreendimentos de energias renováveis, notadamente para as fontes eólica e solar. Hoje os estados de São Paulo, Paraná, Ceará, Bahia, Maranhão, Goiás e Minas Gerais já possuem normas específicas que tratam do licenciamento ambiental de geração de energias renováveis. Os estados da Bahia e de Minas Gerais foram os pioneiros, com a edição respectivamente da Resolução Normativa CEPRAM nº 4.180/2011 (geração de energia eólica) e a Deliberação Normativa COPAM nº 176/2012 (geração de energia solar).
O estado de São Paulo também editou a Resolução SMA nº 74/2017 voltada para projetos de geração de energia solar, que estabelece categorias de porte da atividade com base na potência instalada dos parques, bem como a necessidade de estudos ambientais mais simples: Estudo Ambiental Simplificado (EAS) ou Relatório Ambiental Preliminar (RAP) – em vez de EIA/RIMA. Já no estado do Ceará, que editou recentemente as Resoluções COEMA nº 5/2018 e nº 6/2018, a classificação do porte dos empreendimentos de geração solar é feita de acordo com o tamanho da área (em hectares), e há previsão de EIA/RIMA em determinadas hipóteses (as mesmas previstas na Resolução CONAMA Nº 462/2014).
Esta falta de uniformidade, contudo, pode representar um entrave à criação de um ambiente favorável ao desenvolvimento das energias renováveis no Brasil. Neste contexto, há sobretudo a necessidade de superar a falta de integração e articulação entre a normatização no âmbito do direito regulatório de energia e do direito ambiental.
Apesar de todas as fontes renováveis serem consideradas “energia limpa” – e, portanto, causadoras de impacto ambiental positivo para fins do direito ambiental –, sob a perspectiva regulatória nem todas as fontes renováveis são consideradas “incentivadas” para fins de geração de energia elétrica. A título de exemplo, uma grande usina hidrelétrica (UHE) gera energia renovável, mas como as UHEs não se enquadram nos requisitos regulatórios para serem consideradas incentivadas, tais usinas não gozam de determinados direitos instituídos para fomentar a geração de energia elétrica a partir de fontes renováveis no Brasil.
Atualmente, nos termos da Lei Federal nº 9.427/1996 e de suas reformas mais recentes ocorridas em 2015 e 2016, os empreendimentos que podem se valer de um desconto não inferior a 50% a ser aplicado às tarifas de uso dos sistemas elétricos de transmissão e de distribuição (TUST e TUSD), incidindo na produção e no consumo da energia comercializada pelos aproveitamentos e destinada à autoprodução, são, dentre outros:
empreendimentos com base em fontes solar, eólica, biomassa e cogeração qualificada, incluindo proveniente de resíduos sólidos urbanos e rurais, cuja potência injetada nos sistemas de transmissão ou distribuição seja menor ou igual a 30.000 kW; e
empreendimentos com base em fontes solar, eólica, biomassa e cogeração qualificada, desde que a potência injetada nos sistemas de transmissão ou distribuição seja maior que 30.000 kW e menor ou igual a 300.000 kW, que sejam vencedores de leilão de energia nova (i.e. leilões destinados à expansão da oferta, incluindo, leilões de energia de reserva e leilões de fontes alternativas) realizado a partir de 1º de janeiro de 2016 ou que sejam autorizados a partir de 1º de janeiro de 2016.
Assim, até janeiro de 2016 era comum que os empreendedores implantassem parques solares e eólicos de forma fracionada em conjuntos de pequenos parques menores, com potência inferior ou igual a 30.000 kW cada um, contíguos entre si. Embora sob o aspecto formal tais empreendimentos sejam distintos, na prática constituem grandes complexos.
Ocorre que essa fragmentação dos parques acaba sendo prejudicial para o licenciamento ambiental, pois dificulta a análise dos impactos socioambientais do empreendimento enquanto conjunto de parques eólicos ou solares contíguos, com todos os seus impactos cumulativos e sinérgicos. Por essa razão o estado do Ceará inclusive resolveu dispor em sua recente norma que os novos empreendimentos de parques eólicos contíguos pertencentes a um mesmo empreendedor serão considerados como um único empreendimento para fins de licenciamento ambiental.
Neste sentido, são bem-vindas as iniciativas de regulamentação como a do estado do Ceará, que trazem mais segurança jurídica para as novas implantações, após anos de incertezas sobre o adequado enquadramento dos projetos para fins de licenciamento ambiental. Por outro lado, as discrepâncias no tratamento do licenciamento da energia solar entre os estados ainda revela uma curva de aprendizagem da instalação destes empreendimentos no Brasil. Essa falta de uniformidade e insegurança jurídica dificultam a análise de investimentos e oneram o desenvolvimento destes projetos que têm um altíssimo potencial de trazer benefícios ambientais extraterritoriais e benefícios socioeconômicos para as populações locais.
Note-se que buscar as políticas para o desenvolvimento das energias renováveis no Brasil inclusive faz parte do compromisso legal assumido pelo Brasil no Acordo de Paris de mudanças climáticas da ONU, tratado internacional ratificado pelo governo brasileiro desde setembro de 2016. Para atingir a meta de redução de 37% de suas emissões de gases do efeito estufa em comparação aos níveis de 2005, até o ano de 2025, o Brasil informou em seu documento de “Contribuição Nacionalmente Determinada” (em inglês “NDC”) que pretende aumentar a participação das energias renováveis para que represente 45% da matriz energética nacional. Dessa forma, para cumprir com seu compromisso, o governo brasileiro precisa melhorar as políticas existentes, ou criar e fomentar novos instrumentos legais para o desenvolvimento das energias renováveis.
Há mecanismos já presentes na legislação brasileira que apresentam potencial para utilização no fomento das energias renováveis. Dentre eles estão as debêntures incentivadas de infraestrutura da Lei Federal nº 12.431/2011. Este formato de emissão de título de dívida inclusive pode ser utilizado sob a rotulagem de “título verde” (ou no inglês conhecido como “green bonds”), quando emitidos para a captação de recursos para implantação ou refinanciamento de projetos que geram impacto ambiental ou climático positivo. A maior parte dos títulos verdes emitidos no Brasil foi direcionada para financiar a implantação de projetos de energia eólica, sendo que recentemente a ISA CTEEP inclusive emitiu título para implantação de linha de transmissão que viabilizou o fornecimento de energia gerada por plantas solares no estado de São Paulo. Em 2017, o BNDES realizou a primeira emissão de green bonds por banco brasileiro e conseguiu captar US$1 bilhão para investimento em fontes solares e eólicas no Brasil.
Outro novo instrumento legal com alto potencial de fomentar a geração de energia renovável é o Programa RenovaBio, instituído pela Lei Federal nº 13.576/2017. Ao estipular metas anuais de descarbonização para o setor de combustíveis, a norma busca estimular o aumento da produção e participação dos biocombustíveis na matriz energética dos transportes brasileiros, abrindo espaço para que esta indústria cresça nos próximos anos. Além disso, o RenovaBio cria o Crédito de Descarbonização (CBIO), um título financeiro negociável na bolsa de valores que representa os níveis de eficiência energética do biocombustível produzido pelas distribuidoras e que deriva de certificação aprovada pela Agência Nacional de Petróleo (ANP).
Mas sem dúvida o projeto de lei da reforma do marco legal do setor elétrico, que passou pela consulta pública nº 33/2017 promovida pelo Ministério de Minas e Energia, seria a oportunidade ideal para introduzir de maneira integrada e abrangente as medidas de incentivo ou melhoria do ambiente regulatório para promoção das energias renováveis. As alterações propostas, contudo, representam tímidas contribuições para o fomento à geração de energias renováveis.
Na referida minuta, os descontos atualmente concedidos aos geradores incentivados poderiam ser condicionados a (a) contrapartidas dos beneficiários, condizentes com a finalidade do subsídio; e (b) critérios de acesso que considerem, inclusive, aspectos ambientais e as condições sociais e econômicas do público alvo. Tais critérios de habilitação totalmente novos alegadamente propiciarão o “desenvolvimento de um mecanismo de mercado para valoração dos atributos ambientais, que permite capturar o progresso tecnológico e o barateamento das fontes com baixa emissão de carbono”. O projeto de lei também dispõe sobre a criação, pelo Poder Executivo, de um plano para a valorização dos benefícios ambientais relacionados às fontes de energia com baixa emissão de carbono.
A proposta de reformulação do setor elétrico encontra-se atualmente em discussão na Câmara dos Deputados (Projeto de Lei nº 1917/2015). O parecer mais recente do relator do projeto na Câmara dos Deputados propõe que os critérios mais restritivos e o plano de valorização dos benefícios ambientais não sejam aplicáveis aos empreendimentos outorgados até 31 de dezembro de 2020.
Consideramos que as alterações propostas, ao pretenderem criar requisitos adicionais para a fruição do desconto tarifário, em um primeiro momento podem ter um impacto negativo na viabilização de novos projetos de expansão com base em fontes renováveis, pelo menos até que fiquem claros os critérios que potencialmente irão restringir o acesso aos incentivos. Por outro lado, no curto prazo, a criação de um regime de transição até o final de 2020 confere maior segurança jurídica aos empreendedores e, na prática, poderá estimular e “acelerar” projetos com base em fontes incentivadas que possam se valer do regime jurídico atual no qual não há a necessidade de contrapartidas ou atendimento a critérios de acesso.
Há muito o que melhorar no desenvolvimento de um ambiente regulatório favorável à geração de energias renováveis no Brasil. Se hoje temos uma matriz predominantemente limpa, largamente baseada na geração de energia hidrelétrica, é não apenas porque havia abundância do recurso natural renovável água, mas porque escolhas foram feitas pelo legislador e pelo poder executivo no passado que permitiram o amplo desenvolvimento dessa atividade. Com o passar do tempo, as mudanças do clima, o desenvolvimento tecnológico e a abundância de outros recursos naturais renováveis sugerem novas oportunidades para que o legislador e regulador em todos os níveis crie, de forma coordenada, os instrumentos legais e regulatórios para orientar e incentivar estas atividades no Brasil. Com o potencial inigualável de utilização de fontes renováveis que o Brasil tem, seria de se esperar que fôssemos modelo de governança e regulamentação da utilização de energias renováveis para o mundo.
Atenciosamente
Alexandre Kellermann
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